Historicamente, a psicologia foi instrumento de controle social, condicionamento a padrões e de conceitos deterministas que invalidavam o contexto. Ao longo do tempo, construiu saberes próprios e diversas linhas mais libertadoras. Como psicóloga Histórico-cultural, minha atuação está para os atendimentos no consultório, assim como está para a produção de eventos que promovam saúde, fortaleçam capacidades, desenvolvam a crítica, recorrendo à arte, para a qualidade da vida em sociedade.
A qualidade de vida não depende de como “treinamos nosso olhar” ou “trocamos um chip”. E, antes que as pessoas defensoras destes jargões apareçam, quero dizer que considero, sim, a forma como damos sentido às experiências vividas. A psicologia Histórico-cultural discute uma subjetividade que interfere e é afetada por relações, numa relação dialética. O que somos, ou nos propomos ser, está relacionado à nossa história, às expectativas que fizeram e fazem sobre nossas escolhas, e com quem nos relacionamos, onde trabalhamos, como usamos nosso “tempo livre”, além das condições macro: econômicas, geo-culturais, as conjunturas, que parecem existir por si só, mas, são resultados de relações, movidas por contradições.
Simples, não é! A qualidade de vida se faz em pequenas atitudes, também, mas estará dentro de uma complexa rede social e de uma rica e complexa internalização pessoal. Neste caso, o que fazer para melhorar as condições psíquicas, chamadas de “saúde mental”? Como se proteger do que nos fragiliza, onde as coisas parecem perder o sentido? Como prevenir transtornos e adoecimentos? É necessário conhecer e interferir no contexto social, ampliar experiências, atuar em atividades significativas.
A OMS (Organização Mundial da Saúde), em 1947, já trazia um conceito de saúde para além da biologia, sendo o equilíbrio entre o fisiológico e o psíquico e suas condições sociais e de trabalho, não é ausência de doença, de sofrimento, mas a capacidade sob determinado contexto. Se limitamos a saúde mental ao que se refere às emoções, ao pensamento, e reforçamos a ideia de dualidade entre corpo e mente, arriscamos reduzir à própria pessoa a responsabilidade pelo seu sofrimento, parecendo que apenas falta vontade para controlar o que sente. Contudo, se o pensamento pode alterar as dores, tantas outras influências podem alterar o pensamento. Você já percebeu que estar ciente de uma situação e da rede que a constitui, não melhora o problema, mas ajuda a diversificar soluções? Reconhecer a dinâmica entre o interno e o externo, buscar informações confiáveis, ajuda de especialistas e atividades que ampliem capacidades, são movimentos de fortalecimento e de saúde.
Atividades comuns podem ser prognóstico indissociável a qualquer tratamento de saúde, como a visita a uma pessoa querida, caminhadas, músicas, danças, ler ou cozinhar, porque, a depender do sentido individual dado à tarefa, estas podem ampliar as aspirações em vez de reduzir o ânimo para a vida. O bordão: “Isto não é psicoterapia, mas é terapêutico”, não exclui o tratamento com psicologia ou psiquiatria, quando necessários, mas, traduzem a importância de nos permitirmos ao que nos é significativo. Tratamentos precisam estar associados à boa relação social e às atividades da rotina.
Realizamos a 10a Oficina Criativa de expressão pessoal e relacional, “Da porta pra dentro” e “Porto afora”, no mês de junho, desenvolvendo um trabalho que converge com a psicologia. Com poemas, dinâmicas e troca de experiências, levam ao “pensar em si, no mundo”. Cada participante, com a sua história, protagoniza o processo. Fazemos exercícios leves que nos conectam ao corpo como território de memórias, de cultura, de aversões e de afetos. Lemos poemas desfolhados em novas interpretações críticas e contemplativas da arte literária. Compartilhamos fazeres nos espaços da Feirinha da Oficina, onde se pode trazer roupas e livros usados para troca ou venda, algum produto culinário, divulgar serviços e programações. Também há espaço para apresentação de música, dança, tela, ou a mediação de algo de sua área, como uma posição de ioga ou um jogo.
A proposta é o encontro poético das possibilidades que cada pessoa pode encontrar quando se relaciona bem. As diferenças são tão atraentes quanto o que há em comum porque transformam.
No mais, torço para que possamos reconhecer possibilidades de viver com mais dignidade, para manter o senso crítico e amoroso sobre o mundo, sobre as relações e sobre nosso processo singular.
Eliss de Castro, psicóloga, poeta, ativista cultural.
Instagram @elissdecastro @psico.oficina
Tribuna Livre na Revista Sopa de Siri – edição 278/setembro – página 33